27 agosto 2015

instante urbano xxxii

Aproveitando a temperatura amena do início da tarde, resolvemos dar um passeio pelos campos e montes que rodeiam a aldeia. Levámos a criança mais velha connosco, que apesar de contrariada, lá foi arrastando os pés, sempre a barafustar com as comichões e mordidas dos bichos e bicharocos que não nos largavam. Não parou de resmungar e de lamentar ter aceitado o nosso desafio. A determinada altura e depois de mandar um berro, assustada, disse à mãe: - Mãe, um Saltão pisou-me um pé!... Coitada da urbanita. Ou muito me engano ou não volta a sair da aldeia.

03 agosto 2015

na casa de papel de valter hugo mãe...

...escreveu ontem, dia 2 de Agosto (revista do jornal Público), sobre o festival de Paredes de Coura. Apesar de não ser um consumidor desse formato, adoptado com sucesso, de eventos, não posso deixar de referir a impressionante escrita de Valter Hugo Mãe e a magnífica elegia aí produzida ao festival de "gente junta com vontade de estar feliz".

"Coura são as termas da música. O tratamento para todas as patologias operado pela maturação dos sons no esplendor da paisagem"

mediascape: europa sitiada

Não sei o que mais irá acontecer e quais as verdadeiras consequências daquilo que temos vindo a assistir nos últimos meses na Europa. Os surtos migratórios incontroláveis provenientes de África com destino à Europa, entrando pela Grécia, Itália e França, com o objectivo de chegarem a um país seguro e à procura de uma vida melhor, tem levantado questões e desafios aos países da Europa, para os quais não estavam minimamente preparados e as reacções têm sido, no mínimo, desastrosas. Primeiro, o patrulhamento do Mediterrâneo, depois os campos de refugiados, onde se excluem essas pessoas de qualquer condição digna de cidadania, ainda mais os muros que vão sendo construídos, numa atitude impensável para suster esses desgraçados que apenas querem fugir da morte, tentativa desesperada e estúpida de líderes europeus anacrónicos. Por fim, as vedações, as cercas, os polícias e seus cães, a correria dos corpos de intervenção e o caos total em plena Europa, no coração da civilização europeia. Como chegámos a esta situação?
As notícias documentadas por imagens que nos últimos dias nos chegaram do norte de França são paradigmáticas do desespero dos homens e mulheres que tentam a qualquer custo chegar a Inglaterra e também do desnorte das autoridades francesas e inglesas, que não estão preparadas para esta situação, nem tão pouco existe uma política e uma estratégia dos Estados para lidar com tal catástrofe humanitária. São impressionantes as imagens que assistimos da situação em Calais (França), onde se situa a entrada do túnel do canal da Mancha. A parafernália policial, o ambiente prisional, o caos da debandada daquela massa humana e o choque com a polícia, não são imagens a que estejamos habituados a ver na Europa.
O que mais me impressiona é a impotência das autoridades e dos governos, que não conseguem fazer mais do que declarar guerra a essa "praga" e reprimir, criando campos de exclusão onde concentram os emigrantes que vão chegando. Estamos a falar de autênticos guetos, patrulhados e vedados ao exterior, onde os seus "habitantes" são obrigados a viver em condições sub-humanas, naquilo que é conhecida por "selva". Estamos a construir muros e mais muros, aqui e acolá, umas vezes sem pudor, outras com vergonha e chamando-lhes outros nomes. A concentração destes seres humanos em espaços circunspectos, sitiados por enormes vedações de arame farpado, perspectiva-nos um futuro dantesco, o de uma Europa sitiada em si.
Tudo isto fez-me regressar a Zygmunt Bauman e ao seu livro "a sociedade sitiada" (2002), que recentemente lera e que trata, entre outros, destes assuntos. Deixo aqui alguns excertos desse livro:

A tendência actual para reduzir drasticamente o direito ao asilo político acompanhada pela recusa tenaz da entrada de «imigrantes económicos», não indicia nenhuma nova estratégia a respeito do fenómeno dos refugiados - apenas a falta de uma estratégia e o desejo de evitar uma situação em que essa falta provoque embaraços políticos. (...) Além das usuais advertências de que exploram a segurança social e roubam empregos, os refugiados são agora ainda acusados de desempenharem o papel de «quinta coluna» em nome da rede terrorista mundial. Finalmente, existe uma razão «racional» e moralmente inatacável para capturar, encarcerar e deportar pessoas quando já não sabemos como lidar elas e não nos queremos dar ao trabalho de o descobrir.
(...)
As portas podem estar trancadas mas o problema não desaparecerá, por muito seguras que sejam as trancas. As trancas nada fazem para domar ou enfraquecer as forças que causam o desalojamento. As trancas podem ajudar a manter o problema longe da vista e do coração, mas não o erradicam. E, assim, cada vez mais, os refugiados encontram-se num fogo cruzado; mais precisamente, numa encruzilhada. São expulsos à força ou amedrontados até fugirem dos seus países de origem, mas é-lhes recusada a entrada em qualquer outro. Não mudam de lugar; perdem um lugar na terra e são catapultados para nenhures, para o «não lugar» de Marc Augé...
(...)
Os campos são artifícios tornados permanentes através do bloqueio das saídas. Os enclausurados não podem regressar ao local de onde vieram. (...) Os refugiados estão «lá mas não são de lá». Estão separados do resto do país de acolhimento pelo véu invisível , embora denso e impenetrável, da suspeição e do ressentimento. Estão suspensos num vazio espacial em que o tempo parou.
(...)
Mais do que qualquer outros micro-mundos sociais inventados, os campos de refugiados aproximam-se do tipo ideal da «instituição total» de Erving Goffman: oferecem, por comissão ou omissão, uma «vida total» de que não há escapatória. Ao abandonarem ou tendo sido expulsos do seu antigo ambiente, os refugiados tendem a ser despojados das identidades que esse ambiente definia, assegurava e reproduzia.

Assim vamos neste velha e agora perdida Europa.